23.10.04

Ainda se discute rinhas!
Memória do JB

Carlos Drummond de Andrade (1983)

Como se não bastasse tanta gente brigando feio no Oriente e na América Central, ainda há quem se lembre de promover briga de galo, e até de justificá-la econômica e socialmente, argumentando que o fechamento das granjas especializadas na criação de aves de combate importaria em aumento da taxa nacional de desemprego! Esta é forte. O que os defensores da rinha esquecem é que os empregos correspondentes poderiam muito bem ser conservados e até multiplicados se essas granjas de tipo perverso passassem dedicar-se à criação de aves comuns, em bases empresariais que garantissem o aumento de produção e o relativo barateamento de custo. Quanto brasileiro que há por aí que não pode permitir-se o luxo de comer frango e fica estatelado de horror ao saber que os galos são dispensados de sua missão de reprodutores para se estraçalharem mutuamente, em espetáculos pagos a bom preço e assistidos por espectadores sádicos!
O desemprego que os defensores da briga de galos querem evitar é o de pessoas que exercem atividade ilegal de trabalho, e portanto não são socialmente defensáveis. A aceitar-se o critério de que eles merecem apoio porque ganham assim o pão de cada dia, temos de admitir igualmente que os traficantes de tóxicos não podem ser impedidos de exercer sua atividade sinistra porque vivem dela. (...) Que tal institucionalizar a guerra como veículo supremo de emprego nas retaguardas, e também de lucro nas linhas de frente, onde se fariam apostas sobre a sorte dos combates, o número e gravidade de ferimentos, a duração de agonias? Será altíssima contribuição para o desenvolvimento das nações, mediante o pleno emprego dos sobreviventes.
(...) A confusão de valores é tamanha que se chama a essa luta de esporte. Esporte seriam então os entreveros a faca ou punhal, os enfrentamentos a pistola, e qualquer tipo de ferocidade a que nos aplicássemos. Seria altamente esportivo todo conflito de rua, as mais fascinantes se tornariam ainda os assaltos organizados a bancos e joalherias, com os seguranças treinados para rechaçá-los. As mortes subseqüentes valeriam como pontos negativos para cada uma das partes, e os espectadores, se tivessem folga para isso, fariam apostas em cruzeiros ou dólares sobre o final da partida. Afinal, seguranças e assaltantes precisam viver, mesmo à custa de sangue derramado. (...). Fora com os torturadores de animais!
Artigo publicado em 8 de novembro de 1983 no Caderno B do Jornal do Brasil
[23/OUT/2004]

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